segunda-feira, 27 de abril de 2009

LEIS QUE SECAM (PUNEM e SALVAM)

O grande barato da liberdade de expressão é justamente o poder de escrever o que se pensa, o que se acredita, e não raro somente para desabafar.
Leio com prazer a revista Caros Amigos justamente por isso. Ali se veem matérias e abordagens que fogem ao tratamento de boiada que nos impinge a grande mídia – com as devidas escusas pelo emprego do chavão. Sem a pressão e as pautas dos donos da opinião, há uma maior chance de efetiva informação.
Contudo, imersa em tanta liberdade, é natural que aqui ou ali ocorra uma escorregadela, principalmente nas opiniões dos articulistas.
É o que ocorreu a meu juízo com Guilherme Scalzilli na revista n.144 (março de 2009), página 10, com o título “Leis que secam”, onde condena a criminalização da direção de veículos por pessoas alcoolizadas.
Segundo referido “historiador e escritor”, uma análise fria das estatísticas revela que a chamada Lei Seca fracassou. Defende que ao longo dos quase nove meses de vigência da proibição ao consumo de álcool pelos motoristas, a queda no número de acidentes, quando ocorreu, foi insuficiente para justificar o radicalismo da medida.
Assevera o autor do texto que é contraproducente usar os incontáveis males causados pelo álcool como escudo meritório da legislação e que a questão foge ao âmbito da saúde pública, ressaltando que nesta seara o proibicionismo jamais obteve resultados. Em seguida, emenda: tampouco ajuda a reafirmar a óbvia importância de punir o motorista embriagado, mesmo que persistam críticas aos fundamentos técnicos da tolerância mínima e ao caráter autoritário desse tipo de norma.
Mais adiante, alegando que a população já teria sentido a incapacidade estatal de uma fiscalização satisfatória, que não há dados confiáveis sobre as efetivas causas dos acidentes, perorou que as polícias preferem inspecionar a conduta dos jovens abonados, ignorando as várias periferias urbanas e a gigantesca, tenebrosa malha rodoviária, redutos dos verdadeiros assassinos motorizados.
Mas para mim, “operador do Direito”, o trecho mais cerebral é o seguinte: tudo isso resulta num placebo jurídico fadado ao descrédito geral. Milhões de novos bafômetros continuarão insuficientes enquanto faltarem políticas preventivas que envolvam investimentos em transporte público, melhorias nas estradas, exames específicos para motoristas profissionais de todas as categorias, qualificação policial e disseminação de vistorias sistemáticas, principalmente nas regiões mais vulneráveis.
Finaliza assim: a repressão obtusa é o refúgio da incompetência administrativa. Criminalizar substâncias e usuários apenas expurga as culpas de uma sociedade conservadora e assustada, nada mais. Tragédias independem de canetadas autoritárias.
Li, reli e não entendi de fato onde ele quis chegar.
Até concordo quando diz que não há estatísticas confiáveis sobre a redução dos acidentes nos quase nove meses de vigência da lei, mas, por isso mesmo, seria possível tê-las em tão curto período?
Pelo meu sentir, porém, por lidar diariamente com bêbados, criminosos, causadores e vítimas de acidentes de trânsito, sem falar em ouvir médicos, policiais, enfermeiros, bombeiros, concluo que a lei seca para os motoristas tem se justificado plenamente. Diminuiu o número envolvendo embriagados e a sensação de injustiça. Aliás, o número de acidentes em si não é um termômetro avalizado para medir a acuidade da restrição, já que teríamos de considerar o sensível aumento da frota nacional, dentre outros vários aspectos.
De outro lado, admito ter em relação às bebidas alcoólicas uma posição radical. E não me envergonho disso.
Anseio que se dissemine que o consumo imoderado do álcool é uma chaga, um problema de saúde, de justiça e de administração pública. Costumo dizer, com efeito, que se baníssemos, como por encanto, as bebidas alcoólicas no Brasil, já a partir do dia seguinte veríamos um paulatino decréscimo do numero de processos ingressando nos fóruns, já que decisivo fator de violência doméstica, briga entre vizinhos, crimes contra o patrimônio, separações, divórcios, investigações de paternidade, abandono, disputa de guarda de filhos, e, sim, acidentes de trânsito – jurisdiciono em Comarca dividida por rodovia que liga o sul ao norte do Brasil.
Não fosse o bastante, fora os gastos com a solução destes conflitos e com suas vítimas, alguém já parou para calcular quanto de impostos se compromete com o custo dos alcoolistas ao sistema público de saúde (hipertensão, problemas renais, do aparelho digestivo, mentais, etc)?
O historiador autor da coluna fala na troca da repressão da lei por políticas públicas preventivas, mas concretamente o que está posto na nossa cara é que embora a sociedade no consciente coletivo abomine a violência do trânsito relacionada ao álcool, no inconsciente, que acaba prevalecendo, não abre mão da beberragem, basta ver a licenciosidade na propaganda e na venda das bebidas, afora o apreço popular pelas músicas que glorificam a idéia do beber até cair como algo bonito, como uma necessária fuga da realidade. Não é típica a exaltação da autoimagem do brasileiro: “nóis trupica, mas não cai”?
Some-se que, considerada as limitações orçamentárias, que alija de serviços essenciais um grande número de cidadãos, utilizar os já insuficientes recursos do erário para desenvolver políticas públicas para combater o desvio, necessidade plantada, lucrativa e desagregadoral, é um absurdo.
Ademais, não há investimento ou política pública que consiga se igualar ao poder de sedução da bunda (e do rosto também, né?) da Juliana Paes na propaganda da Antártica, do deixa a vida me levar (para uma cirrose hepática) daquele grande exemplo de cidadão que é o Zeca Pagodinho. Ora, negocia-se o “se beber, não dirija” na propaganda, tudo politicamente correto, pede-se uma outra rodada, brinda-se à liberdade, ao fim do autoritarismo e, depois da saideira, sai todo mundo dirigindo.
Aliás, o uso pelo colunista daquele discurso falacioso do autoritarismo da lei é dose – dupla, se me permitem.
Ora, a lei é autoritária somente quando deriva de um poder ilegítimo, sem respaldo constitucional e democrático. No mais, o autoritarismo que incomoda o colunista deriva do próprio atributo da norma de impor ou vedar determinada conduta, sem a qual não seria norma, não seria lei e é só o que nos assegura atualmente vivermos uns junto dos outros, senão era a selva completa.
Depois disso, a lei não tem mera finalidade preventiva, no que teria de se justificar na redução de acidentes, mas também repressiva, sendo imposição de justiça elementar punir alguém que, propositalmente se coloca em notória condição de incompatibilidade de dirigir, e coloca em risco, quando não vitima, mata, fere, destruindo sonhos e famílias alheias.
Embriagar-se e sair conduzindo é de uma inconseqüência tão grande, de uma potencialidade trágica tão evidenciada, que se coloca no espaço de mediação do Estado, apta a ensejar sua criminalização como tipo penal de perigo abstrato, isto é, é crime mesmo que o resultado potencial, a morte, a lesão corporal não ocorra. Senão, se consubstancia no risco de produzir o resultado que materializa o dolo eventual que, no caso de morte, leva o agente a Júri pelo homicídio praticado.
Normas penais destinam-se a proteger bens jurídicos: vida, integridade física, patrimônio e assim por diante.
Merecem maior apenamento e tratamento mais severo os delitos que causam intensa repulsa social.
É fácil, neste ínterim, aquilatar a intensidade da revolta popular com uma morte no trânsito causada por sujeito embriagado. Se a polícia não o retira do local imediatamente, corre risco de ser linchado.
Em suma, divirjo diametralmente: repressão obtusa salva vidas. E não está se criminalizando substâncias nem pessoas, mas desejando punir, o que é bem diferente, pessoas que abusam de substâncias e autoritariamente, aí sim, passam a ser algozes, potenciais ao menos, da vida dos outros.

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