Segundo o Jornal, os processos que não foram julgados nos últimos três anos serão retirados da relatoria do desembargador, que terá de explicar os motivos da não prolação do provimento jurisdicional. O processo será encaminhado a um relator "produtivo", que terá 120 dias para dar a decisão. Além disso, o juiz ou desembargador com produtividade igual ou inferior a 70% da média de seus pares de seção ou subseção poderá ser investigado.
A OAB qualificou a medida de "corajosa".
Analiso a notícia com um mínimo de profundidade, o que, claro, a imprensa não faz.
Até o brasileiro mais desinformado sabe que a única justificativa para submeter alguém a uma investigação é a fundada suspeita que o investigado cometeu um ato ilícito, de ordem penal ou civil.
Indago, assim, que crime ou ato ilícito teria cometido o magistrado que não produziu segundo os demais?
Respondo com a obviedade: não há crime que possa o magistrado neste contexto ter cometido.
A questão que remanesce, pois, é saber se o fato de não manter a média de produção dos colegas caracteriza infração aos deveres do magistrado previstos em lei.
Com efeito, são deveres do magistrado relacionados ao tema em debate, segundo o art. 35 da Lei Orgânica da Magistratura: a) não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar; b) determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais; c) comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término.
Pois bem. Examinemos um a um os deveres dos juízes, para vermos se há adequação do fato (não produzir segundo a média) à norma (incisos do art. 35 da Loman).
Em um cenário de 773 mil processos represados no TJ de São Paulo, em que todos recursos e a manifestação da parte contrária tem de ser lidos, assim como a diligência com que a sentença deve ser elaborada, uma vez que não raro pode mudar (para melhor ou pior e de forma definitiva) a vida de uma pessoa, não está absolutamente justificado o excesso de prazo para decidir?
Também não se está imputando aos magistrados do TJ paulista não comparecerem no local de trabalho ou ausentarem-se injustificadamente das sessões de julgamento.
Vê-se, deste modo, que em uma análise apenas menos superficial do que a da notícia, não há justa causa para investigar os juízes.
Aliás, a superficialidade com que essa problemática da morosidade do Judiciário é tratada pela imprensa, e pelos próprios "operadores do Direito", sem procurar, fora no maniqueísmo, as verdadeiras razões do empilhamento dos processos nos fóruns e tribunais, serve à perfeição ao discurso do sistema, pois tem como corolário a desfiguração do juiz, de julgador para gestor, e da produção jurisdicional descuidada, faminta de simplificações e de atalhos, com a observância da jurisprudência, ainda que não consolidada. Não é mania de perseguição constatar o apego cada vez maior da jurisprudência - na verdade do arremedo de jurisprudência - aos reflexos econômicos das decisões, em suma, ao bem estar das corporações, com o respeito cego aos seus negócios, produzida por tribunais onde o lobby para os entendimentos e na escolha dos próprios ministros é noticiado e sequer negado pelos agraciados.
Faço um parentesis. Hoje, uma vaga de ministro do STF obriga o candidato a assumir perante a presidenta compromissos que, discutidos em contexto de subserviência, e longe do espaço de transparência, podem envolver aspectos que refogem ao interesse público e ingressam nas casuísticas, aviltantes da imparcialidade e da íntima convicção para julgar. Isto para ficar no mínimo. E tem as listas sextúplas, as tríplices e a indicação dos demais ministros e desembargadores. Há um artigo do Desembargador Elpídio Donizete sobre o beija mão do processo de indicação. É possível imacular a jurisprudência da influência do processo viciado da escolha dos juízes dos tribunais? Fora aqueles rapapés de congressos e viagens oferecidos, e não raro fruídos, e que tem sido noticiados pela imprensa.
Dá para perceber que a jurisprudência e a pressão cada vez maior para que seja aplicada sem maiores considerações, fator decisivo para a operosidade, não é andorinha que voa sozinha ao sabor dos ventos.
Temo que esta obsessão pela morosidade e a responsabilidade que se quer impingir aos juízes, de forma quase exclusiva, seja pretexto para terminar de enquadrar o Judiciário, justificando, progressivamente em maior medida, a vinculação do juiz àquele arremedo de jurisprudência de que falei, sob o também pretexto da "segurança jurídica", para o fito real de dirigir as decisões ao respeito dos negócios e uma atenção meramente retórica aos direitos de cidadania.
Em suma, sob a fantasia do debate acerca da morosidade, única e exclusivamente sob a ótica da produtividade dos juízes, cria-se a necessidade do acatamento, daí as súmulas vinculantes, o instituto da repercussão geral e etc.
Não obstante, a produção em série tende a despersonalizar a atividade judicante, superficializando a fundamentação das decisões e impedindo a priorização de feitos em cuja análise, defendo, o juiz não pode ser neutro, mas apenas imparcial, como, por exemplo, nas ações de improbidade ou aquelas cujo objeto seja a preservação do meio ambiente.
Tenha-se em mente que o establishment se notabiliza pela retórica. Cria de forma subreptícia demandas da sociedade, como o do controle do Judiciário, sob falsas razões, deixando os verdadeiros propósitos para a atuação. Lembro que anteriormente à "Reforma do Judiciário", o controle se fundava no discurso do acesso de todos à Justiça, em abrir a "caixa-preta", enfim a bordões que, embora desprovidos de significado concreto, possuíam grande apelo emocional, sempre muito eficientes no sentido de seduzir um poder legislativo semi-analfabeto, demagogo e subserviente como o nosso.
Produtividade, é claro, tem a ver com o reclame da morosidade do Judiciário. Mas acreditar que aí temos a única causa do gargalo e que o juiz é o homem malo, o preguiçoso que emperra a eficiência, mais uma vez é cantilena que rotula e acua não por acaso.
Não saindo da generalização, ao atribuir-se a vilania do problema ao magistrado, olvidando da complexidade e da interdisciplinariedade de suas causas, o que se sacrifica, em verdade, é a mínima possibilidade de se encontrar um mecanismo adequado de enfrentamento.
Neste cenário, o grande causador do volume crescente do ingresso de processos em todos os órgãos judiciários que é a patológica litigiosidade, acaba por não ser enfrentado. Ao contrário, na pressão de culpar-se o juiz, de aponta-lo como vagabundo, coloca-se no corner todo uma classe que, se sobrasse tempo para manifestar suas posições, poderia, por exemplo, na mesma vilania da outra, dizer que o culpado é o advogado, que não concilia, sequer procura a outra parte antes de ingressar com a demanda judicial, deixa de pleitear administrativamente, apenas para perceber os honorários de sucumbência.
Outros fatores de demora na tramitação dos processos como a legislação, a ausência de servidores e recursos de informática também acabam sendo relegados, como se apenas um desculpa esfarrapada dos juízes. Mas vá ver os recursos materiais e humanos da média das unidades jurisdicionais para ver.
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